Matéria Uol-Universa:”Meu rosto foi reconstruído após agressão de namorado”; conheça projeto

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Com o rosto desfigurado, a tatuadora Patricia Lopes, 37, procurou uma delegacia em São Paulo para fazer um boletim de ocorrência por violência doméstica em outubro de 2020. “Mas a policial que me atendeu viu minha situação e disse: ‘você não tem condição de fazer um B.O.'”, relembra Patricia, que, ensanguentada, tinha cortes no rosto e raízes de dentes aparentes.

Patricia havia sido espancada pelo então namorado com quem mantinha uma relação há quatro anos. “Era 7h30, falei de uma conta de água que tinha que ser paga, e ele disse que ia embora e respondi que não, que iríamos pagar as contas primeiro. Quando me virei para sair de casa, ele se irritou e veio com tudo pra cima de mim, me deu um murro na nuca, eu caí e ele começou a pisar no meu rosto. Eu me lembro de tentar me levantar e ele chutar meu ombro. Levei pisões na cabeça, foi horrível.”

Vítima de violência doméstica, Patricia Lopes foi atendida pelo projeto Um Novo Olhar, comandado pela dermatologista Carla Góes
Imagem: Reprodução

Hoje, ela se dá conta de que, mesmo antes desse episódio, vivia um relacionamento abusivo com violência psicológica e física. “Ele já me empurrou, me deu cabeçada. Eu romantizava as situações. Quando ele tinha ciúme de roupa, de batom vermelho, por exemplo. Ele mesmo dava um jeito de fazer com que eu me sentisse culpada por ter se descontrolado”

Ao procurar o hospital, Patricia foi colocada na ala psiquiátrica sem explicação, ao lado de pacientes amarrados e em surtos psicóticos. Quase 12 horas depois, ainda não tinha passado por uma consulta com profissional de saúde. Sem previsão de atendimento, saiu do quarto e foi embora com a camisola do hospital. Ficou dias isolada em casa e machucada física e emocionalmente. “Achei que minha vida tinha acabado ali.”

“Renasci no dia que encontrei projeto para vítimas de violência doméstica”

Como última alternativa para pedir ajuda, Patricia resolveu postar sua história no Instagram. A partir de interações na rede, chegou ao projeto Um Novo Olhar, que, entre outros serviços, oferece tratamentos para reconstrução facial de vítimas de violência doméstica.

Na sequência, foi atendida pela dermatologista Carla Góes, criadora do projeto Um Novo Olhar. “De lá, já fui encaminhada para dentista, e para um clínico geral. Fiz tomografias e ressonância do ombro para ver se tinha algum problema. Fiz cirurgia na boca e várias sessões de laser para tirar marcas e hematomas do rosto”, relembra Patricia.

Além do tratamento físico, conta, fez diferença o tratamento afetuoso. “Encontrei abrigo real no projeto. Hoje estou recuperada fisicamente e mentalmente, estou caminhando, porque tive esse atendimento. Foi importante a escuta atenta dos profissionais com quem cruzei para eu saber que eu não estava sozinha, me senti amparada.”

Patricia conta que muitas mulheres a procuraram pedindo ajuda, por estarem em situação parecida. Sua fala, agora, é de esperança. “Eu digo: ‘existe um novo olhar depois do trauma. Consegui alcançar isso depois da agressão, depois da dor, depois de sentir tudo na carne”, diz ela, que faz também tratamento psicológico e psiquiátrico

Agora, ainda espera uma resposta da Justiça. Após nove meses do registro do B.O. na 9ª Delegacia de Defesa da Mulher, em São Paulo, o inquérito está parado, e o agressor já tem ordem de prisão preventiva, mas está foragido — nessa situação, não é concedida medida protetiva. A SSP-SP (Secretaria de Segurança Pública de São Paulo) foi procurada pela reportagem para falar sobre a morosidade do processo e respondeu, em nota, que “diligências são realizadas para localizá-lo e prendê-lo”, sem dar detalhes.

“Às vezes, profissionais da saúde só prejudicam vítimas”, diz médica

A dermatologista Carla Góes ajuda vítimas de violência doméstica  - Divulgação - Divulgação
A dermatologista Carla Góes ajuda vítimas de violência doméstica
Imagem: Divulgação

A necessidade de um tratamento especializado para vítimas de violência doméstica motivou a dermatologista Carla Góes a criar o projeto Um Novo Olhar, em 2018. “Às vezes, a equipe médica só prejudica a vítima. É uma situação específica vivida pela paciente e precisa de uma atenção especial, um cuidado em ouvi-la sem julgamento”, afirma Góes. “Atendo mulher que diz: ‘doutora, é a primeira vez que sou tratada como ser humano’. É impressionante como os médicos estão despreparados.”

Atualmente, 25 voluntários trabalham no projeto, que engloba profissionais de diferentes áreas da saúde. O primeiro contato costuma ser por meio de Góes, que, após uma primeira conversa, encaminha a mulher para o profissional específico para cada caso. Em algumas situações, é ela mesma que atende a paciente, principalmente quando é necessária uma reconstrução facial

“Atendi uma vítima que teve 17 facadas no rosto. Conseguimos uma operação para colocar prótese de titânio na face, ela estava com o olho afundado. Mas também usei tecnologias a laser e ácido hialurônico para preenchimento, tudo isso para ela ter seu rosto de volta”, conta.

A médica ressalta que é comum o agressor querer desfigurar o rosto da vítima. “É para tirar ela de circulação, colocar uma marca da vergonha nessa mulher. Assim, ela deixa de ir para o trabalho, não encontra famílias, amigos, e fica cada vez mais isolada”, pontua.

O projeto trabalha em parceria com a operadora de saúde Prevent Senior para atender as mulheres gratuitamente. Recentemente, firmou parceria também com o Hospital das Clínicas, em São Paulo, para oferecer o primeiro serviço de atendimento psiquiátrico e psicológico da instituição para vítimas de violência doméstica. A ideia é estender o trabalho e iniciar uma pós-graduação dentro do HC para capacitar profissionais de saúde a lidar com pacientes vítimas de violência doméstica.

“Essas mulheres precisam ser recebidas sem nenhum tipo de julgamento, isso muda a vida delas. É emocionante ver como uma pessoa à beira do suicídio, sem expectativa, consegue voltar a sorrir”, afirma Góes. “Vejo que fazemos a diferença na vida delas pelas mensagens que recebemos. A última que uma mulher me mandou dizia o seguinte: ‘obrigada por não me deixar desistir’.”

Como procurar ajuda

É possível entrar em contato com o projeto Um Novo Olhar por meio do site ou da página no Instagram. Se você está sofrendo violência de gênero ou conhece alguém que esteja passando por isso, pode ligar para o número 180, a Central de Atendimento à Mulher. Funciona em todo o país e no exterior, 24 horas por dia. A ligação é gratuita. O serviço recebe denúncias, dá orientação de especialistas e faz encaminhamento para serviços de proteção e auxílio psicológico. O contato também pode ser feito pelo Whatsapp no número (61) 99656-5008.

Também é possível realizar denúncias de violência contra a mulher pelo aplicativo Direitos Humanos Brasil e na página da Ouvidoria Nacional de Diretos Humanos, do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos.

Veja mais em https://www.uol.com.br/universa/noticias/redacao/2021/07/07/meu-rosto-foi-reconstruido-apos-agressao-de-namorado-conheca-servico.htm?cmpid=copiaecola